HAIR

Instalação de vídeo e som, em colaboração com Djaimilia Pereira de Almeida, Nabil Iqbal e Maria Vilela Mãe

 


 

A falta de cabelo do buraco negro significa que ele tem uma espécie de "esquecimento terrível" e único, como nenhuma outra estrutura do universo. Mas há aqui algo que ainda não compreendemos… (Nabil Iqbal)


HAIR é uma instalação multimédia sobre a justaposição de dois conceitos-chave: resistência e fragilidade. Criada para a edição de 2022 do Festival TransEuropa, a obra nasceu do diálogo entre o eixo dramatúrgico e curatorial da temporada inaugural da UMA - BURACO 2.0 - e o tema do festival: Descolonizar! Descarbonizar! Democratizar!

HAIR aborda a materialidade contraditória do cabelo como uma fibra incrivelmente resistente (por exemplo, um único fio de cabelo pode aguentar até 3 quilos de peso e quando morremos o nosso cabelo continua a crescer, adiando a morte e marcando a passagem do tempo), e como “coisa” frágil e fantasmagórica, quando separada de um corpo vivo. Enquanto experiência imersiva de som e vídeo, a instalação posiciona o cabelo como um objeto que despoleta um multiverso de perspetivas filosóficas e discursos políticos, incluindo teorias astrofísicas sobre a (im)possibilidade de os buracos negros guardarem informação no seu “cabelo”; o cabelo como símbolo de desejo e repressão colonial; as leis de mercado em torno da manufatura capilar; ou mesmo o cabelo como materialização de identidade e memória pessoais. Embora a tradição ocidental, moldada por mitologias clássicas e bíblicas, tenha equacionado o cabelo como resistência = virilidade e força (pensemos na história de Sansão, por exemplo), com esta instalação propomos uma equação alternativa:

Resistência = fragilidade+decrepitude+fantasmagoria. 

Através da sua condição dupla enquanto fibra viva (que cresce, estica e encolhe) e fibra morta (que parte, cai, e por fim apodrece), o cabelo evoca um arquivo que permanece presente através da sua própria falha, vestígios e espectralidades. 

Acreditamos que a transversalidade e multidisciplinaridade entre práticas académicas e não-académicas, entre expressões artísticas e não-artísticas, são a chave para a democratização e descolonização do pensamento crítico. As colaborações horizontais entre pessoas de diferentes nacionalidades, filiações e áreas de especialização no decurso de uma pesquisa - no caso de HAIR, sobre resistência e fragilidade - são absolutamente fundamentais para o processo artístico e para a criação. Por isso, enquanto criadoras, decidimos convocar as vozes diversas de Nabil Iqbal - astrofísico sediado no Reino Unido e especialista em buracos negros -, a escritora Portuguesa Djaimilia Pereira de Almeida - autora do romance semi-autobiográfico Esse Cabelo -, e Maria Vilela Mãe - cabeleireira e especialista capilar.

 

FICHA ARTÍSTICA:

Concepção artística e coordenação: 
JOANA MAGALHÃES, MAFALDA LENCASTRE, MARIA INÊS MARQUES (UMA)

Contribuições de:
DJAIMILIA PEREIRA DE ALMEIDA, NABIL IQBAL, MARIA VILELA MÃE, MARIA INÊS MARQUES

Vozes:
MAURO HERMÍNIO, NABIL IQBAL, MAFALDA LENCASTRE, MARIA VILELA MÃE

Execução da cenografia:
SIGN WIDE FORMAT PRINTING

Desenho de som:
RAFAEL MAIA

Direção técnica:
LUÍS SILVA

Edição de vídeo: 
MARIA LEITE

Apoio técnico:
UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA - ESCOLA DAS ARTES, COMÉDIAS DO MINHO, TEATRO A QUATRO

Agradecimentos:
Stéphane Alberto, Catarina Barros, Vasco Ferreira, Ricardo Gomes, Susana Paixão

Inauguração: 21 de abril de 2022 | Festival TransEuropa | Cooperativa Árvore (Porto)

 

 

 Textos

Djaimilia Pereira de Almeida, excertos de Esse Cabelo(2015) /

A minha mãe cortou-me o cabelo pela primeira vez aos seis meses. O cabelo, que segundo vários testemunhos e escassas fotografias era liso, renasceu crespo e seco. Não sei se isto resume a minha vida, ainda curta. Mais depressa se diria o contrário. Na curva da nuca crescem ainda hoje inexplicavelmente lisos cabelos de bebé que trato como um traço vestigial. Nasce daquele primeiro corte a biografia do meu cabelo. Nada haveria a dizer de um cabelo que não fosse um problema.

Acordo desde sempre com uma juba revolta, tantas vezes a antítese do meu caminho, e tão longe dos aconselhados lenços para cobrir o cabelo ao dormir. Dizer que acordo de juba por desmazelo é já dizer que acordo todos os dias com um mínimo de vergonha ou um motivo para me rir de mim mesma ao espelho: um motivo vivido com impaciência e às vezes com raiva. Devo, porventura, ao corte de cabelo dos meus seis meses a lembrança diária que me liga aos meus. 

A verdade é que a história do meu cabelo crespo intersecta a história de pelo menos dois países e, panoramicamente, a história indirecta da relação entre vários continentes: uma geopolítica [...] Descendo de gerações de alienados, o que talvez seja sinal de que o que se passa por dentro das cabeças dos meus antepassados é mais importante do que o que se tem passado por fora. A família a quem devo este cabelo descreveu o caminho entre Portugal e Angola em navios e aviões, ao longo de quatro gerações. [...] A casa assombrada que é todo o cabeleireiro para a rapariga que sou é muitas vezes o que me sobra de África e da história da dignidade dos meus antepassados.

A narração elíptica da biografia inacabada do meu cabelo, a que a debilidade da memória me força, frustra toda a filosofia do cabelo. Seria preciso uma memória de elefante, não uma juba revolta.
Esta é uma história de resultados fugazes: penteados que nunca soube manter e que, no dia seguinte, quando não no próprio, eram um desapontamento. A minha avó branca [...] perguntava-me pelo cabelo: “Então, Mila, quando é que tratas esse cabelo?” O cabelo era então distintamente uma personagem, um alter-ego presente na sala. Eu nascia, com um grau distinto de paranóia, para o meu cabelo e ao mesmo tempo para uma ideia de mulher.

O primeiro salão da minha vida escondia-se numa rua íngreme, em Sapadores, que viria a reencontrar por acaso, numa mudança de bairro, vinte anos depois [...] De Sapadores, volta-me com tonturas de amoníaco descer umas escadas para uma cave exígua de paredes brancas, salão cujo excesso de zelo com a higiene, comum na pobreza, me pareceu aos seis anos luxuoso. Sobra-me pouco mais do que o rosa-choque da embalagem de desfrisante Soft & Free (ou seria Dark & Lovely?), anunciando, na variedade infantil, crianças negras de cabelos lisos [...] O tratamento, cuja química abrasiva obriga ao uso de luvas, consistia, segundo me explicaram, em “abrir o cabelo”, torná-lo mais maleável. [...] Mentiria se dissesse que recordo o ritual operado em Sapadores, mas não deve ter fugido do habitual. Primeiro, devem ter-me sentado numa cadeira com uma almofada por baixo do rabo e eu devo ter desfeito o penteado improvisado que trazia. [...] Alguém me terá separado o cabelo em quatro partes fazendo força de mais com um pente fino. Depois, alguém se terá esquecido de me proteger o couro cabeludo com a loção aconselhada, etapa preventiva normalmente dispensada pela experiência. 
Em Oeiras [...] fui levada a uma dona Mena do terceiro andar, uma senhora mulata que arranjava cabelos em casa, mas já não tenho disso quaisquer imagens, senão a do lavatório adaptado na casa de banho [...] Não me lembro da juba do dia seguinte, mas ostentei-a decerto com orgulho. Revia a dona Mena com frequência no elevador: perguntava-me pelo cabelo e dava-me conselhos, um marcador externo da minha desilusão.

Penso que o que procurei sempre, além de tentar aprender a responder ao bullying das cabeleireiras, foi viver uma história de fidelidade. Contou-me uma amiga que a cabeleireira de uma vida perdera a mão para o seu cabelo. Pensei que era isto que eu queria, uma mão a que confiar-me e que porventura me ensinasse: uma mão visível.

Eis-me diante do espelho de manhã, quando todos os esforços resultam ao lado, e vem-me esse tempo doce, anterior à repercussão das frustrações estéticas num enjoo vivido ao longo do dia como uma falha moral, uma maldição. O tempo em que errar no penteado é um pormenor despiciendo, em que não fomos ainda a jogo nem dominamos a arte de nos enjoarmos com a nossa aparência [...] Fazer as pazes connosco parece-se, penso para comigo, com fazer as pazes com a nossa ascendência.

Que sozinho tem estado o meu cabelo todos estes anos! Acordei do esquecimento do meu cabelo com o desenho de um pretendente, aos catorze anos, no qual aparecia nua e curvada sobre mim mesma, de tranças desmanchadas sobre as costas. Obra de uma senegalesa em Algés, essas tranças ocuparam outro dia inteiro, de que recordo o alguidar de água a ferver em que, terminadas, as submergi para encaracolar as pontas das extensões. [...] Renasci para o novo cabelo postiço, que nunca tivera tão comprido, com uma naturalidade que, à distância, me deixa perplexa. Tinha em mim todo o saber de um cabelo longo, um jeito para o pôr atrás das orelhas que sobreviveu até aos cortes esporádicos, um movimento natural dos ombros que depressa se tornaria um tique, a mania de enrolar as pontas com os dedos. [...] À semelhança do cabelo postiço, comprido numa questão de minutos, dei um pulo.

Em dois mil e doze, com indisfarçável desgosto, cortei o cabelo para me esquecer dele ainda mais. É claro que expliquei a mim mesma o esquecimento como simples sentido prático: lavar e andar, etc. Não posso esquecer-me deste cabelo sem me esquecer também de mim e seguir à minha frente deixando-me para trás como duas pessoas que se perdem numa feira, admiti para comigo mais tarde. Na sequência desse último corte começaria a vontade de saber a sua história. [...] Tinha o cabelo curto e via-me em casa no dia em que acordei com saudades de mim, mas saudades do que nunca fora, de duas ou três ruas de Luanda, de um estereótipo: saudades, meu Deus, de uma caricatura da pessoa que eu poderia ter sido, um exotismo.

O cabelo e escrever precisariam de vir um dia a alinhar-se como um par num reencontro. O livro do cabelo, no entanto, exigiria o esforço de deixar a literatura à porta, como o meu marido esperando-me ao longo dos anos em quatro automóveis diferentes e ligando-me para perguntar se já me despachei, com receio de se dar a ver às raparigas dos salões, tantas vezes preconceituosas, ficando no carro para me proteger de reparos, ouvindo rádio, mexendo no telefone, fazendo tempo. No livro do cabelo, a literatura faz tempo no carro e olha-me sem me reconhecer à primeira quando entro perguntando-lhe se gosta.

Numa fotografia, o meu penteado de noiva. Foi obra do Roberto, um cabeleireiro brasileiro que me acudira na recepção de um salão depois de uma rapariga de cabelo lilás me informar de que ali não se tratava de cabelos como o meu [...] Vejo o penteado assimétrico, mais volumoso à esquerda do que à direita, pedira-o clássico desta vez [...] À noite, a muitos quilómetros de distância, desmanchei com ajuda o penteado já irreconhecível, reencontrando o meu cabelo comprido. 

A única vez que percorri Lisboa em busca de um ornamento para o cabelo ia à procura de uma magnólia de seda para rematar o meu penteado de noiva. Na Rua da Conceição, numa retrosaria, fui persuadida da singularidade de uma travessa de strass, que acabaria por usar na cerimónia [...] revelou-se uma má compra, escorregando do meu cabelo alisado. No regresso, esqueci-a numa gaveta. Anos depois, arranjei uma vitrina. Enchia-a de quinquilharia e fotografias e lembrei-me da travessa [...] Vejo-a todos os dias ao atravessar o corredor. Não me lembra o dia em que a usei. Na reserva da vitrina, corresponde a um emblema do meu drama capilar. [...] A travessa exposta na vitrina devolve-me a mim como decoração do meu cabelo. O cabelo é a pessoa. 

 

 

Nabil Iqbal /


Quero falar-vos sobre buracos negros e a possibilidade de eles poderem ter “cabelo”. Primeiro, o que é um buraco negro? Imaginemos que pegamos em muita matéria e que a juntamos num lugar algures, longe, no espaço. Como sabemos, a matéria é atraída pela força da gravidade. Se juntarmos matéria suficiente num só lugar, a atração gravitacional fará com que ela se desmorone sobre si mesma de uma maneira particularmente violenta. Acreditamos que isso acontece na vida real quando certas estrelas ficam sem combustível e colapsam para dentro. Em última análise, a gravidade é tão forte que nada pode escapar dela – nem a matéria que a fez, nem qualquer nave espacial alienígena que esteja de passagem, nem mesmo a própria luz – e daí o nome “buraco negro”.

Se formos mais específicos, há uma superfície invisível no espaço – uma esfera a que chamamos “horizonte de eventos”, que circunda o buraco negro. Se cruzarmos esse horizonte de eventos, ficamos totalmente presos; a gravidade do buraco negro vai puxar-nos para dentro e nunca poderemos voltar ao mundo exterior. Ao imaginar um buraco negro, devemos, portanto, imaginar uma esfera preta sem características - o horizonte de eventos -  a “comer” tudo o que está ao seu redor.

Um facto interessante é que os buracos negros são, simultaneamente, as coisas mais simples e mais complexas do universo. Primeiro, para entender por que é que eles são simples, devemos questionar o que torna as "outras coisas" tão complexas. Vamos então imaginar não um buraco negro, mas algo mais familiar, como um rosto humano. Há muitas informações que caracterizam o rosto humano: a distância entre os olhos, a sua cor, o formato dos lábios... E há muitas maneiras de mudar um rosto humano: usar sombra ou batom, deixar crescer o bigode ou a barba. Podemos pintar o rosto todo de azul, se quisermos. Ou, claro, o “cabelo”: podemos deixar crescer o cabelo, ou cortá-lo, penteá-lo de várias maneiras, pintá-lo de azul, fazer tranças... A ideia a que quero aqui chegar é a de que os “objetos comuns", tais como um rosto humano, são caracterizados por muitas informações na medida em que há várias coisas diferentes que eles podem "fazer", e talvez possamos pensar no cabelo da nossa cabeça como um símbolo disso.

O que é interessante nos buracos negros é que não lhes podemos “fazer” nenhuma dessas coisas. É claro que um buraco negro não tem rosto, mas acontece que não é possível modificar o seu horizonte de eventos de “qualquer maneira”. Para entender porquê, imaginemos que tentamos pintá-lo de uma cor diferente. Não conseguiríamos, porque a tinta iria simplesmente cair e ser engolida. Não podemos colocar-lhe um chapéu, o chapéu será comido. Há, portanto, uma incrível “simplicidade” nos buracos negros, e é por isso que os cientistas dizem que os “buracos negros não têm cabelo”. Isto significa que não é possível ornamentar um “horizonte de eventos” de um buraco negro, ou deixar que o seu cabelo cresça, sendo aqui “cabelo” uma metáfora para “qualquer coisa que possa carregar informação”, seja de que maneira for. 

O facto de um buraco negro não ter cabelo e de a sua superfície ser totalmente inexpressiva, diz-nos, assim, que ele “não tem memória” do que lhe aconteceu. Podemos atirar-lhe um dicionário, ou uma nave espacial, ou mesmo um planeta inteiro cheio de pessoas com as suas esperanças e sonhos, que o buraco negro irá engoli-lo sem deixar vestígios no horizonte. A falta de cabelo do buraco negro significa que ele tem uma espécie de "esquecimento terrível" e único, como nenhuma outra estrutura do universo. 

O que eu acabo de vos dizer corresponde à crença dos cientistas sobre como os buracos negros funcionam. Mas esta história pode não estar completa. Parece haver, aliás, algo de profundamente perturbador e “errado” nessa imagem. Os físicos acreditam que não deveria haver no universo nenhuma maneira de destruir informação irremediavelmente. Ficamos talvez surpreendidos com esta afirmação. Afinal, se colocarmos um pedaço de papel numa trituradora, ou se queimarmos um livro, pode parecer à primeira vista que as informações ali armazenadas foram destruídas. Mas isso não é verdade.  Nestes exemplos, podemos “em princípio” voltar a juntar as tiras de papel, ou (embora talvez mais difícil) rastrear as trajetórias em espiral de partículas individuais de fumo e cinza até chegar ao livro em chamas, para recuperar as palavras que nele foram escritas. Embora isso seja praticamente impossível, é muito importante para a consistência do universo e para as leis da mecânica quântica que seja possível “em princípio”. 
O que acabo de dizer sobre a falta de cabelo dos buracos negros contradiz esse princípio. Parece que podemos atirar um livro para um buraco negro e a informação do livro simplesmente desaparece para sempre. Na sua grande maioria, os físicos acreditam que isto não pode ser verdade, e que existe algo que ainda escapa à nossa compreensão. Essa tensão é, às vezes, chamada de Paradoxo da Informação do Buraco Negro, e acho que é justo afirmar que ainda não a entendemos. Passei à frente muita informação nesta explicação, mas isto é algo que vários cientistas estão ativamente a investigar neste preciso momento. Se nos debruçarmos o suficiente sobre o assunto, parece inevitável imaginar que, de alguma maneira, o buraco negro contém a informação de tudo o que nele caiu. 

Apesar de, para já, os buracos negros não terem aparentemente cabelo, parece que guardam, em certo sentido, pelo menos a memória das coisas que experienciaram, dos objetos que consumiram, e das circunstâncias em que nasceram, ou seja, do colapsar de estrelas. Eu acredito que quando entendermos um pouco mais sobre como estas memórias se imprimem na superfície dos buracos negros, e sobre como este cabelo (que é invisível, mas de algum modo tangível) codifica essa informação, teremos percebido algo de muito profundo e precioso sobre o funcionamento do universo.

 
 

Maria Vilela Mãe /

Eu trabalho sempre com cabelo natural. As clientes muitas vezes vêm com uma ideia do que querem, mas eu nem sempre acho que essa ideia funciona para elas. Quando eu comecei, não havia muita variedade, mas agora há um mercado livre, por isso a cliente pode escolher ela própria. Só na zona do Marquês há muitas lojas de cabelo... Algum do cabelo não é natural, mas essa fibra específica parece cabelo natural e é muito fácil de trabalhar. Mesmo as perucas que há hoje em dia são feitas deste material e dão imitações lindíssimas. E a diferença de preço é enorme.
Há muitas marcas que fazem isso hoje. Eles vão ao Cambodja. O cabelo com que trabalhamos no ocidente (mesmo para os cabelos Afro, porque o cabelo pode ser frizado com máquinas) - ele vem todo do Cambodja, do Vietname, das zonas mais pobres da China... Porque aquele cabelo é encorpado e grosso, consegue aguentar as muitas fases do processo de tratamento. Uma destas fases é a despigmentação. Quando se retira o pigmento de cabelo vietnamita, vamos supor, ele fica mais grosso do que o nosso, porque despigmentar o nosso cabelo significa retilhar-lhe grossura - fica muito leve, mole, cai mal. Mas o cabelo daquelas senhoras é espetacular, e elas vendem-no. Mas fazem muito pouco dinheiro... estamos a falar de um mercado muito rico!

Quando comecei, recebia cabelo ainda cheio de piolhos e lêndias, mesmo depois de passar por um tratamento logo e complexo. Mas isto foi há 30 anos. O cabelo desta boneca, por exemplo, até tem cabelos brancos... Não tem pigmento, senão cheirava mal e não era possível trabalhá-lo, ia continuar vivo (dá muito trabalho matá-lo), não dá para fazer nada com ele. Ao retirar o pigmento, estamos a retirar-lhe a natureza. Eu também faço isso, de vez em quando retiro pigmento do cabelo. E consigo pôr qualquer cabelo branco, com total ausência de pigmento. Mas como eu quero que a cliente mantenha o cabelo, faço-o aos poucos. Eles não fazem assim: mergulham o cabelo em tanques de lixívia, ou doutro produtor semelhante (talvez mais forte), e ele despigmenta muito mais rápido. Depois, começam a tratar o cabelo, madeixa por madeixa. Podemos fazer o que quisermos com ele. Eu faço o quero com o cabelo desta boneca, fica vulnerável, ao contrário do cabelo natural. As cores nunca falham. Se quiser azul, ele fica azul. Se quiser amarelo, ele fica amarelo. Isto acontece porque o cabelo não tem pigmento natural. Por isso, o pigmento é o que faz a diferença. O cabelo escuro também é mais resistente do que o cabelo loiro. O cabelo loiro também precisa de despigmentação total, senão deita cheiro, apodrece, perde vida - necessita de uma despigmentação específica, para se parecer com cabelo vivo, apesar de estar morto. Esta técnica melhorou com o tempo, claro. Eu acho que ela é perfeita agora, mas há muitos anos trabalhar com cabelo natural era horrível. Agora pode-se fazer o que se quiser deste cabelo...

O amoníaco não faz parte do processo... Eles não mostram o processo, não dizem como fazem. O que sei é que o cabelo é preparado em tanques, mas eles não dizem que químicos é que usam... provavelmente porque é um negócio muito rentável, o mercado do cabelo, quero dizer. Para vos dar uma ideia, um bocadinho de extensões de cabelo natural, aqui para a parte de trás do pescoço, custa mais do que mil euros... Mas hoje, se não se for um especialista em cabelo, não se nota a diferença entre cabelo natural e artificial, que se encontra facilmente em lojas (há tantas lojas agora!). Muitas raparigas africanas usam cabelo artificial...

A nossa técnica de alisamento dura muito tempo e é perfeita porque o cabelo da cliente volta à memória e fica lindo. Com o passar do tempo, o corte fica mais bonito, porque o cabelo volta às suas ondas naturais. O que acontece quando se alisa o cabelo é que as escamas estão viradas para cima e... bem, imagina um fio com as fibras todas a apontar para fora, assim. O que acontece quando se alisa o cabelo desta forma é que... Ainda melhor: imagina um queijo dos Açores, com os buracos todos. O produto de silicone vai preencher esses buracos, por isso, quando o pente desliza pelo cabelo, o silicone agarra-se aos buracos. E cria a ilusão de que o cabelo está perfeito e liso. Quando as escamas se fecham, o cabelo parece mais brilhante. Hoje, os japoneses têm as melhores técnicas de alisamento. No Brasil, as atrizes de novela usam a técnica japonesa, não usam produtos brasileiros.

O cabelo nunca apobrede completamente. Cheira mal, mas nunca desaparece. Mesmo que o queimes, ele fica em carvão. O cabelo é muito forte, consegue aguentar uma prancha quente a 250 graus. É obra, não é?... Sim, o cabelo tem memória. Se eu fizer a risca deste lado, duas semanas depois ele volta a cair para o outro lado, se for assim que eu o uso. O cabelo tem memória. Por exemplo, se eu te cortar o cabelo, precisa de duas semanas para ir à memória, para saber qual é a sua forma natural. Eu moldo o cabelo como quero, porque treinei muito para o dominar e desenvolvi a minha própria técnica de mãos. Mas é uma ilusão, porque a cliente vai para casa, lava o cabelo e essa memória vai-se. Ou a cliente tem jeito ou é preciso tempo para o cabelo ir à memória.

Hoje em dia, há uma teoria do cabelo quadrado e do cabelo redondo. Algumas pessoas têm o cabelo redondo e outras têm o cabelo quadrado. Se olhares para uma fibra de cabelo ao microscópio... Costumava achar-se que ele era todo redondo, mas não é. Isto são teorias que ainda estão no início mas vai tudo começar de novo. E é este o caminho, porque eles estão a desenvolver novos tipos de tinta baseados nas zonas geográficas, nos tipos de água, etc.. O objetivo é desenvolver tintas e produtos para cada zona. Se um produto for desenvolvido para um território específico e depois o usares aqui, não interessa o quaão talentosa a cabeleireira é. O produtor foi feito para aquela zona. Mas vai haver uma grande revolução nos cabelos daqui a dois ou três anos.


 

Maria Inês Marques /

Quando a Grace Jones dorme num quarto totalmente escuro, sem que o mínimo feixe de luz atravesse o espaço opaco e denso, os sonhos repetem-se quase infinitamente, auto-regenerando-se como uma planária que, cortada em dez, cem, ou mil, volta viva e multiplicada à décima, centésima ou milésima exponência… No escuro total, os sonhos são a tinta e a cor. As suas explosões são violentas, o sistema nervoso torna-se colorido e o cérebro arde de cor.  

Numa dessas noites de escuridão, em que o seu escalpe sublimemente esculpido por mãos de bruxa descansava sobre a almofada de seda, Grace Jones sonhou com um cabelo num castelo. Só o cabelo, sem escalpe, sem crânio, sem caveira. Este cabelo era apenas cor e textura, pura superfície. Era escuro, pesado, redondo e flutuava em velocidade cruzeiro por um corredor longo, também ele escuro. As paredes dos dois lados estavam adornadas com cabeças que, penduradas em elaborados ganchos de ferro, tombavam para a frente, os olhos fitando o chão. Eram cabeças de mulheres, talvez reais, talvez de cera, sem cabelo, e adornadas com pesadas jóias. 

O cabelo chamava-se Judite e seguia sozinho pelo corredor longo e afunilado. Evitava olhar para as cabeças, porque estava à procura de portas. Judite viu uma porta à sua esquerda. Parecia fechada mas, mal Judite se aproximou, a porta abriu-se. Uma luz vermelha sangue jorrou do interior da câmara para o corredor. Lá dentro, instrumentos de tortura reluziam, como se tivessem acabado se der polidos. Prateado e vermelho. O mundo do ferro colidia com o mundo da carne. Judite recuou e seguiu deslizando pelo corredor. Parou subitamente. Não estava sozinha. Pressentiu uma presença na retaguarda, uma espécie de eletricidade estática na nuca. Olhou para trás. Outro cabelo, igual a si, voltado também para a retaguarda. Judite olhou em frente, e assim fez o duplo. A revolução começou, pensou ela.

Segunda porta. À medida que os dois cabelos se aproximaram, a porta foi abrindo, revelando o depósito de armas do castelo. Espadas, granadas, metralhadoras, bestas, catanas, caçadeiras, flechas venenosas, revólveres. Todo o arsenal era côr de laranja fluorescente. No centro da sala, sobre um pedestal de acrílico, pairava uma pistola solitária, também ela cor de laranja e apontada para a porta. Judite ouviu um clique em câmara lenta. O cão da pistola em tensão. A mão invisível que puxava o cão largou-o, de repente. O cartuxo disparou em direção à porta, que se fechou com um estrondo num microssegundo e empurrou Judite de novo para o corredor. A bala ficou cravada na madeira dura da porta. Judite, do lado de fora, era agora seguida por duas cabeleiras duplas. Não podia voltar para trás, por isso continuou a deslizar pelo corredor escuro e afunilado. Sentia uma dor na consciência, como pregos cravados num muro de pedra. Sentia-se a deslizar mais rápido, como se estivesse a fugir das catacumbas, e a integrar-se na velocidade de um novo tempo. O preço da inércia é o whiplash, sobretudo para os cabelos. 

A porta número 3. Desta vez, a porta não abriu. Judite espreitou pelo buraco da fechadura. Do outro lado, uma luz dourada intensa transbordava, ouro líquido viscoso escorria pelas paredes. Quando se afastou da fechadura e olhou para trás, Judite viu três cabeleiras suas duplas, em fila, cada uma olhando para trás. Pareciam uma fileira de dominós que tombam de forma sincronizada. Já não eram escuras, mas completamente platinadas. Teria ela também mudado de cor?

O corredor escuro e afunilado estava cada vez mais húmido. Gotas de água pingavam das cabeças suspensas nas paredes. Judite e as outras cabeleiras platinadas começavam a frisar, cada vez mais curtas e encolhidas. À medida que deslizava mais rápido, como que empurrada por uma irresistível corrente de ar, Judite ouvia uma voz que vinha do fundo do castelo e que lhe dizia: “Tudo corre do passado em direção ao futuro, mas tudo deveria viver no presente, porque no futuro as macieiras deixarão cair o seu fruto. O amanhã apagará os vestígios do presente, e tu não conseguirás acompanhar o ritmo da vida. O lodo do passado, tal qual uma mó, irá arrastar-te para o fundo do pântano.”

Quarta porta. Escancarada. Do outro lado, uma luz azul-esverdeada. No centro, um lago redondo de águas cinzentas, perfeitamente opaco. Um homem de cabelo e barba azuis mergulhava repetidamente no lago, como se estivesse à procura de algum objeto perdido sem o qual não poderia continuar a viver. Não viu Judite e o seu séquito de quatro cabeleiras platinadas e cada vez mais encaracoladas, que continuaram a deslizar pelo corredor. 

O corredor finalmente parou de afunilar. Em frente estava mais uma porta, a quinta. Não havia possibilidade de virar à esquerda nem à direita, por isso, este era o fim da linha, a última passagem. Judite olhou para trás. O seu pequeno exército de duplos desaparecera. A revolução partiu, pensou ela. Quando acabou de formular este pensamento, deu por si do outro lado da porta. Flutuava no centro de um cubo branco e na parede em frente estava um quadrado preto. Um zero quadrangular, pura matéria negra. O quadrado zero era o início. Era o nada. Não devolvia a Judite a sua imagem. Devolvia-lhe pigmento e geometria. Aquele quadrado negro parecia-lhe um escândalo que engolia toda a realidade à sua volta. Dentro do cubo, a intuição estava a transformar-se num fenómeno consciente. 

“Não escondas aquilo que te estou a revelar.” Um sussurro quebrou o silêncio sepulcral do castelo. Vinha do interior do quadrado. 

“Não escondas aquilo que te estou a revelar,” ecoou de novo o quadrado. Judite chegou mais perto. Uma das suas mechas foi imediatamente sugada pelo quadrado. Judite percebeu que o processo seria rápido e irreversível. Pela primeira vez, estava frente a frente com o quadrado, a escassos centímetros de distância. Conseguia cheirar, ouvir, e sentir a temperatura do preto. “Eu uni todos os pontos da sabedoria e libertei a consciência da cor. Tu estás presa nas redes do horizonte, como um peixe.” O quadrado preto engoliu o que restava do cabelo chamado Judite.

 
 

 


 

 

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